“Gabi, estou com o livro pronto. Me ajuda?”
A pergunta que ouvi em dois novos trabalhos. É curioso como, no fundo, isso passa por algo que me acompanha desde outros tempos. Antes de iniciar o projeto do próximo livro, passei algumas boas horas na última semana revisando e editando textos de outras pessoas.
Olha só, tá vendo aqui?
Isso que você faz é muito bom, traz muito de uma marca sua ao texto.
Olha só, como será que você consegue experimentar novas formas de linguagem neste trecho aqui?
Olha, aqui consigo sentir sua vulnerabilidade, é este o caminho que conversa com a sua proposta!
Olha, muito bom, aqui você me mostra o que quer dizer, sem falar o que se quer - entende a diferença? Parabéns!
Ainda em junho, participei de uma conversa da Seiva sobre este tema: edição - “Texto como profissão”, com mediação do Daniel Lameira e as queridas Bárbara Prince (coordenadora de publicações - Aleph, Antofágica e TAG Livros), Flavia Lago (coordenadora editorial do selo Gutenberg da Autêntica) e Marina Munhoz (coordenadora de produção editorial no Grupo Companhia das Letras).
Fiquei ouvindo e pensando: em que momento a edição surgiu pra mim? Por muitos anos, meu texto foi revisado por professores e chefes. A cada risco vermelho na página, um aprendizado. Pode duvidar, mas realmente não me incomodo em ouvir a crítica quando sei do repertório de quem vem. Alguns comentários guardo até hoje. Sei quem falou e em qual momento disse. Hoje, consigo me lembrar do rosto da pessoa quando leio coisas como:
“possuía”,
“num” em vez de “em um”,
“estava fazendo” quando um simples “fazia” já resolveria…
gerúndios
grafia de numerais
(e aqui vai uma longa lista de etcéteras)
Com o tempo, os papéis se inverteram e parte do meu trabalho passou a ser mexer nos textos da equipe. Na faculdade de jornalismo, ao menos onde cursei, não existiu uma matéria específica sobre editoração. Aprendi na prática, editando centenas e centenas de matérias, reportagens, materiais impressos, trabalhos de conclusão de curso e mais uma série de itens dentro do universo das palavras.
Gostaria de dizer que fui a pessoa mais acolhedora nessa época, mas não fui. O tempo era um fator decisivo que corria na contramão de prazos de entregas e fechamentos de revistas, jornais e outros impressos.
Então, nessa cronologia, nunca pensei em retomar o olhar da área da comunicação para o mercado editorial - mas a maior parte das coisas não estão sob nosso controle (isso aqui eu já aprendi). Não é um trabalho que divulgo, mas, por alguma razão, é um trabalho que me encontra.
Se é assim, faço da melhor forma possível. Agora com tempo, paciência, compaixão e acolhimento. Então, como editar? Digo que as observações apontadas não são leis. Quando falamos em texto não existe uma única resposta, são escolhas. É importante pensar em diferentes alternativas, traçando mais rotas possíveis.



O olhar da editora vem com o compromisso de propor a criação de novos trechos, fazer cortes, entender o que precisa de ajuste, sem apagar a voz de quem escreve. É uma responsabilidade. Há anos, desapeguei da ideia de estabelecer o que é “certo” - uma herança da escola, da faculdade e um traço estrutural já solidificado em como a sociedade enxerga o que é ou não considerado adequado.
Como uma boa rebelde (kkk), também gosto de desafiar a norma culta - confesso. Porém, contudo, entretanto, todavia: para tanto, é preciso conhecê-la. Sentar, falar, dizer de outro jeito, fazer um cházinho quando for preciso relaxar, um café quando for necessário amargar - quem sabe até um vinho que cesse a rigidez na língua.
Para aumentar a intimidade com a palavra, também gosto de ler em voz alta uma ou duas vezes. Deixo descansar. Pergunto ao dicionário, mas também à intuição. Penso: E agora? Devo enxergar o que está oculto? Solto? É isso? Lembro da fala do mestre Marcelino Freire: “tem o tempo do preparo, mas também tem o da oferenda” - o texto precisa ter seu momento de ponto final.
Quando isso acontece? Não sei! Deixa para sua editora interna responder! Antes disso: não tenha medo de bagunçar a página! Desconfie: a palavra tem sua malandragem própria. Às vezes, o que a gente escreve diz muito mais do que queremos, de fato, dizer. Por isso, vale a pena pensar em quais pessoas de confiança você pode mostrar suas palavras (talvez não esteja falando apenas de livros aqui).
Por muito tempo, aprendemos que só existe um jeito “certo” de escrever. Que o bom texto é aquele que segue a gramática à risca, sem gírias, sem sotaque, sem barulho, sem as marcas de quem a gente é.
Quem disse? Sei lá, deve ter sido um abestado aí.
Quando o assunto é língua portuguesa, sou uma grande interessada, mas cultivo uma relação de amor e não de submissão. Percebe? Variações de fala e escrita são reflexo da diversidade social e cultural de uma comunidade. Ignorar isso é reforçar desigualdades. O termo “preconceito linguístico” existe justamente pra denunciar essa ideia de que só escreve bem quem escreve de um jeito específico.
Por isso, diferente dos tempos de editora em periódicos, hoje, quando edito, tenho novas ferramentas na caixinha. Questiono: a vontade de mexer aqui vem por uma questão técnica ou porque meu ouvido desacostumado não processa um jeito de falar que também é legítimo? Tá vendo? Quem define o que é certo? (ainda mais em um país como o nosso).
A edição mora justamente na intersecção do que está dito e o que está querendo ser dito. Sacou? Para terminar, é importante deixar registrado que respeito muito o fundamental e indispensável trabalho dos revisores de texto. Aliás: deixo aqui meu abraço especial pra Zuleica, a revisora mais sagaz que já conheci (fica aqui a indicação). Olhos de lince - sim, Zu… deixei todos os “pra” neste texto de propósito. Irritar é a minha linguagem do amor ❤️
Se quiser que eu edite seu texto com esse olhar, me chama. Prometo bagunçar com muito carinho 😉
📚 Respira em 3, 2, 1…



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📝 Ponto final
Rico Dalasam é um mago na arte de brincar com as palavras. Um álbum favorito? Fim das Tentativas. Essa conversa com a Manuela Xavier está um primor 🫶🏼
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Um abraço,
G!
É muito legal acompanhar esse processo acontecendo
ai gostei demais!
o ofício da edição é complexo e delicioso