#16 ✍🏻 o que você precisa para escrever?
por favor, me vê um caderno sem pauta com canetinhas
papel e caneta? / notebook de última geração? / bloco de notas do celular?/ o guardanapo do balcão? / mais referências e cursos? / um bom português?
Só quem passa por processos terapêuticos sabe: mais cedo ou mais tarde, é certo que a psicóloga vai propor uma reflexão digna de uma explosão atômica na sua vida. E, é claro, o meu momento chegou:
O que você precisa fazer para voltar a escrever como antes?
Pois é. São tantas camadas 😅
Naquele momento, completava precisamente um ano de terapia - meados de março de 2020. Um pouco antes de conhecer, de fato, o que viria a ser a pandemia, trabalhava em um ritmo insano. Com serviços de comunicação, atendia quase 20 clientes ao mesmo tempo, começando a trabalhar antes do Sol nascer e parando tarde da noite.
Eu sei, pode ser contraditório porque, enquanto jornalista, passava a maior parte do tempo escrevendo reportagens, matérias, releases, textos para blog, redes sociais e outros formatos. A questão da época era encontrar o porquê de, mesmo escrevendo o dia todo, ainda sentir tanto distanciamento da escrita.
Não consegui responder a essa pergunta de imediato. Só sei que tentei me reconectar com a escrita feita com menos dados e mais imaginação. Uma escrita que não veio a partir da gramática, que fosse reconhecida por meio de uma nota de prova na escola ou na faculdade, muito menos de algum tipo de herança familiar, já que, nem meu pai e nem minha mãe trabalhavam com isso.
Eis que… um dia, passando a tarde em uma biblioteca, reparei no espaço de sugestões de leitura do mês. Entre os livros ali dispostos, um específico de capa rosa me chamou atenção. Ainda não sabia, mas aquela leitura seria a primeira fagulha responsável por desencadear uma série de acontecimentos que envolveram esse processo de reaproximação e descoberta.
Me lembro de ficar chocada a cada capítulo. Que história, que ideia incrível de divisão da leitura, que tema difícil de desenvolver, mas ao mesmo tempo quanta sensibilidade - foram algumas das coisas que ecoavam na cabeça. O livro em questão? “O Peso do Pássaro Morto” - da Aline Bei, leitura que foi capaz de reacender uma chama apagada há tempos dentro de mim.
Empolgada com aquela história, fui investigar mais sobre a autora. Logo me dei conta que a Aline era uma escritora, olha só… viva! De fato, a escola traumatizou muitas pessoas da minha geração com a lista de livros para o vestibular. Nos anos 2000, ler José de Alencar, Guimarães Rosa, Gil Vicente, Eça de Queirós - enfim, também fazia parte de uma grande obrigação. O objetivo? Conseguir nota na prova para passar de ano e, quem sabe, o nome no cartaz de aprovados.
PERGUNTA DA FUVEST 2007:
“E chegando à barca da glória, diz ao Anjo:
Brísida. Barqueiro, mano, meus olhos, prancha a Brísida Vaz!
Anjo. Eu não sei quem te cá traz... Brísida. Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deus, minha rosa?
Eu sou Brísida, a preciosa,
que dava as môças aos molhos.A que criava as meninas para os cônegos da Sé... Passai-me, por vossa fé, meu amor, minhas boninas, olhos de perlinhas finas!”
(...)
Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno.
No trecho tratamento que Brísida Vaz dispensa ao Anjo é adequado à obtenção do que ela deseja — isto é, levar o Anjo a permitir que ela embarque? Por quê?
Cara Fuvest, com todo respeito a sua história e, é claro, com nossos escritores clássicos consagrados, mas, sinceramente… como é que eu vou saber, minha amiga? Como é que um jovem nascido nos anos 90, vivendo o auge da sua adolescência em 2007 vai saber o que Gil Vicente quis dizer em determinados trechos do Auto, lá em 1500 e sei lá mais quantos anos? Devolvemos a pergunta: será que o próprio autor sabe claramente o que quer dizer em cada trechinho que escreve?
🤔
Quem nunca, ao reler textos antigos, não ficou ali se questionando: o que será que eu quis dizer com isso aqui? A verdade é que a escrita trabalha muito a subjetividade de quem escreve - e não aceito menos que 10 por essa resposta! Com o tempo, ouvindo as vozes de autores contemporâneos, não só por meio da literatura, mas também participando de feiras literárias, oficinas e cursos, fui entendendo caminhos para a resposta da certeira pergunta da psicóloga.
Nas oportunidades que tive de me aprofundar na escrita, percebi que o que mais me empolgava não eram os conteúdos sobre “modos de fazer”, construções de narrativa ou personagem. É claro que a técnica existe e é importantíssimo estudar os conceitos. É claro que as referências também são grandes agregadoras do texto. É claro que existem manuais, aplicativos, sites e uma série de outras ferramentas que ajudam quem escreve.
Ainda assim, preciso confessar que o caminho da sensibilidade sempre me pareceu mais sedutor. Admitir isso é, de certa forma, estar na contra mão do que costuma ser ensinado sobre a escrita, sobretudo profissionalmente. É fato: o jornalismo exige técnica no texto. Ao encontrar uma reposta para aquela pergunta, percebi que quanto mais escrevia com técnica, mais distante estava do texto que tanto me identificava. Textos que nascem a partir da observação dos gestos e da escuta enquanto uma conversa acontece no entorno.
Quando tive a oportunidade de conhecer a Aline pessoalmente, em 2023, conversei rapidamente com ela sobre essas inquietudes. Queria ter gravado as tantas coisas bonitas que ouvi. Assinando os livros, entre as falas que me marcaram, ela dizia algo na linha de: “Uma dica? Sente ao lado de algo grande e escreva. Vá ao museu para escrever. Sempre vai ter algo mais importante para fazer. Então, tudo o que você precisa fazer é continuar. Continue escrevendo”.
Pois bem. Comecei a escrever essa edição visitando o novo anexo do MASP em São Paulo. Ir ao museu também é lembrar da Aline e aquela conversa na terapia. O que você precisa fazer para escrever? Para mim, a resposta hoje parece mais clara. Para escrever, preciso viver! - deixar a palavra ocupar lugar no corpo. Hoje sei. Aquela sensação da conversa com a psicóloga não era angústia. Era desejo.
Então, pode ser a escrita, mas pode também ser a profissão, uma amizade, uma traição, o divórcio, a troca, o não. O que for, que a gente não silencie os desejos que são tão viscerais dentro da gente.
🧘🏼♀️ Respira em 1, 2, 3…



🧡 Palavras do Substack
O Clay está entre nós e a amiga saiu na Revista Vida Simples - orgulho
Amo a sinceridade da
no maior estilo “meu passado me condena”Você do tipo que não passa mais embaixo da escada? Leia este texto da
com seus textos poéticos e sensíveis, professora inspiradora e muito queridaAmei essa edição sobre Annie Ernaux da
da newsQuem quer(o) viajar para o Japão com a
?📝 Ponto final
Um ótimo disparador para a escrita: janelas ao redor do mundo
Sou daquele tipo de pessoa que tem um caderno para cada coisa e este aqui me inspirou bastante
Artistas da antiguidade retratando animais apenas com uma descrição. Este é o vídeo
Primeira vez por aqui? Fica, vai ter bolo 🎂
Se inscreva para receber a próxima edição no seu e-mail
Até breve,
G!
O tantoooo que o vestibular mexeu com a nossa cabeça.. 🥲 Acho irônico demais a gente precisar “desconstruir” o que um dia nos foi ensinado! Ainda bem que conseguimos, Gabi. Prova disso é essa edição maravilhosa.
Gabi, que reflexão maravilhosa. Eu sempre sinto isso, que para escrever preciso viver. Se não estou vivendo, não tem palavras, sentimentos para serem extraídos de mim. Gostei muito.